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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Fernando Pessoa - Alvaro de Campos - Tabacaria: Nao sou nada...



Fernando Pessoa - Alvaro de Campos-Nao sou nada...


Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Das janelas do meu quarto,
Do meu quarto...um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Da para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Sinto-me hoje quase vencido, como se soubesse a verdade.
sinto-me hoje, quase lúcido, como se estivesse para morrer,
E como se não tivesse mais irmandade com as coisas
Nenhuma relação... a não ser este sentimento de despedida,
tornando-se esta casa e este lado da rua
Uma fileira de carruagens em um comboio de partida aguardada...
dentro da minha cabeça,
e na premissa, uma arrepio e um ranger de dentes na partida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou, achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
Ao mundo que me cerca. como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Saí à campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era uma tal e qual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. E já não sei o que pensar, e em que... pensar?


No que eu sei? no que eu serei? como? se eu que não sei o que sou?
Como posso pensar em ser o que penso?
Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que penso...que não pode haver tantos!
Serei um gênio... quem sabe?
Mas... Neste momento; Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um, ninguém, gênio algum.
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas...
muitas as mesmas que trago em mim!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, creio que nem para mim...

Em quantos quartos sombrios e vazios no mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe... realizáveis,
Mas qued nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente... quem se importa?
O mundo é para quem nasce para o conquistar...
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
E eu... tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, aquele que olha o mundo à partir da solidão do seu quarto,
Ainda que não me enclausure nele;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só aquele que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta aos chutes em uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito num deserto, ou numa capoeira...
E ouviu a voz de Deus num poço coberto de pelo matagal do tempo...
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

Mas para mim, e para o mundo que imagino... pelo menos,
fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, ao relento, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos
invoco a mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até acreditei, sim acreditei nas pessoas... mesmo sabendo,
que às minhas costas o punhal rutilava, pronto para desfazerme em sangue e esterco...
especialmente aqueles que me beijavam a face... ah sim, como neles acreditei.
E julguei que a entrega de minha alma fosse capaz de tornar meu sonho de amor incondicional e
fiel uma unidade entre almas... ledo engano.

Hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um deles e vejo o que me sobrou de minhas tola credulidade...
os andrajos, as chagas e a infecção pestilenta da mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses... apenas te iludisses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas,
Talvez tenha feito de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
Talvez o personagem que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e assim me perdi.
Alimentei-me com a mentira, porque me dava prazer ouvir...
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir meu verdadeiro personage... porque o que permití que
criassem para mim, me impingissem com sua adulação... já não podia ser despido.
Se eu pudera, arrancava fora esta máscara e dormiria na sarjeta
Como um cão tolerado pelos porteiros dos hotéis baratos, dos prostíbulos...
Por ser inofensivo e submisso a ponto de lamber a imunda mão que o apedreja...

E por deboche escrevo esta história para enganarme, para pensar que sou sublime.
Essência visceral dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre alcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas assim como eu, aqueles que da janela de seus quartos sombrios...olham o mundo.
Reflito-me neles com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendida, mal compreendida, mal amada, mal suportada.
Eles morrerão e eu morrerei.
Ele deixarão no esquecimento o que vêem da janela, eu deixarei os versos.
A certa altura suas lembranças suas visões, morrerão também, meus versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá... depois o planeta girante em que tudo isto se deu...
Em outros galáxias de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos
e vivendo seus mundos a partir de um ponto de observação,

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
E vou tentar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino me conceder, continuarei fumando.


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